quarta-feira, 30 de maio de 2012

SAFO DE LESBOS


                                             
                                   I

   Safo de Lesbos nasceu de família aristocrática em Êresos, na costa ocidental da ilha de Lesbos (mar Egeu), em torno de 630 a .C. A poeta viveu numa cidade da costa oriental, a próspera Mitilene, onde teria morrido em cerca de 580 a .C. Seu nome figura desde seu tempo entre os expoentes da poesia grega e de um de seus gêneros mais importantes, a mélica ou lírica. Safo é o único nome feminino no conjunto de poetas da Grécia arcaica (c. 800-480 a .C). A mélica sáfica eram canções para performance ao som da lira, em solo ou em coro. A poesia da Grécia arcaica, e sáfica, por sua vez, fazem parte de um tipo de poesia de tradição oral. Safo, ao lado do poeta e guerreiro Alceu, são os primeiros poetas lésbios dos quais sobreviveram, para cada um, corpos de obra substanciosos. Na forte tradição poética lésbio-eólica figuram ainda os célebres citaredos Terpandro (séculos VIII-VII a .C.) e Árion (séculos VII-VI a .C), estes levaram suas práticas métrico-musicais para outros dois pólos culturais da era arcaica: Esparta e Corinto.
   À Terpandro era creditada a invenção da lira de sete cordas, o que é refutada ante as descobertas arqueológicas que indicam que tal instrumento já era conhecido no mundo minoico-micênico, que é o período que antecede a “Grécia histórica”. Árion, por sua vez, é dado como o poeta do ditirambo, canção de forte aspecto narrativo. Safo e Alceu, na mélica, por sua vez, são nomes notáveis. A mélica, canção destinada à performance, tanto em solo (o chamado simpósio), como em coral (nos festivais cívico-religiosos), acompanhado da lira (além de outros instrumentos), se insere na tradição oral que será chamada de “cultura da canção”. Tal poesia se revestirá, recitada ou cantada na performance, de ideias morais, políticas e sociais. Além disso, a lírica grega, uma vez que era ligada à comunidade de que fazia parte, não tinha o caráter intimista muitas vezes visto na poesia moderna, mas sim se apresentava numa situação de diálogo entre o performer e a audiência. O diálogo, por sua vez, marcou toda a tradição de poesia oral da Grécia, desde a épica homérica e seus poemas monumentais, a Ilíada e a Odisseia (onde havia uma divisão entre narrativa de ação e diálogo), como na lírica grega por todo o período arcaico e antigo.
   A oralidade da composição lírica se vale de estruturas e procedimentos estilísticos de caráter mnemônico, apesar de já haver o alfabeto grego, adaptação do fenício, que se disseminava desde o século IX a .C. A transcrição de tais poemas orais, portanto, não eram para salvaguardar o poema e torná-lo duradouro e famoso, pois a tradição oral fazia isto pela mnemônica, a escrita servia, então, apenas como transcrição de algo já bem estabelecido pela oralidade e que mantinha a sua tradição protegida pela memória, numa existência socialmente bem reconhecida.

                                    II

   A lírica, como nome tardio, deriva do modo de performance, é a referência moderna ao corpo de textos que não são nem poesia hexamétrica (como a épica), nem dramática (tragédia e comédia). Na era arcaica, o nome lírica servirá à mélica, à elegia e ao jambo. E a mélica, como lírica, era a identificação da canção para a lira, daí lírica. Não cabe aqui neste texto, no entanto, entrar no mérito da lírica em seu significado moderno. A composição dessa poesia antiga é pragmática, não serve à explosão da individualidade da lírica moderna, a poesia antiga, por ser oral, não se fixa em regras escritas, não há na poesia arcaica e clássica, leis fixas, tudo passa pela demanda da oralidade que confluirá no encontro entre o poeta e sua audiência. O conceito de literatura moderno, com sua preocupação pela originalidade e criatividade, não servem à análise da poesia dos antigos, uma vez que nesta (a poesia elegíaca, jâmbica e mélica da Grécia arcaica, sobretudo, e clássica) temos mais engenho e menos paixão, mais convenções e menos individualidade, a poesia antiga, essencialmente oral, está submetida à vida social da pólis grega arcaica, é composta, por ser oral, como discurso.
   Quanto à questão do acesso a esta poesia antiga pelos modernos, temos grandes e intransponíveis dificuldades, uma vez que só sobraram poucos fragmentos de tal período, no caso de Safo, uma que se salvou, mesmo assim só temos um poema completo dela, soma-se a isto a falta quase absoluta de conhecimento da biografia destes poetas, muitas vezes misturadas num amálgama de lendas e anedotários. A obra de Safo tem um fato curioso: ela se compõe, do que se achou, de apenas um poema completo, aproximadamente dez fragmentos substanciais, uma centena de citações breves de autores antigos e cerca de 50 peças de textos em papiro, que emergiram das areias do deserto egípcio. Pode-se falar então, não em obra de Safo, mas em fragmentos de Safo. Quanto aos outros poetas da lírica antiga, a poesia jâmbica, a elegíaca e a mélica, é similar ou pior do que o caso de Safo.
   A lírica grega, portanto, torna-se quase que totalmente inacessível, temos que esmiuçar os fragmentos para deles tirar um ínfimo néctar do que sobrou, e aí nos contentarmos com inumeráveis interpretações desses despojos que, modernamente, são quase inaudíveis, a oralidade antiga só sobrevive nos nossos tempos pela escrita presente em raros fragmentos. Portanto, aos que buscam Safo, por sua vez, restam os fragmentos, estes ainda pulsam vida, desafiam os que neles se debruçam, só não temos a própria Safo com sua lira, a parte material é o fragmento quase que totalmente destruído, resta aproveitar o que temos, e não se fundar tanto nas lendas que cercam o nome de Safo, a mulher, a lésbica, pois os mitos sempre rondaram as biografias, e os biografados nada puderam dizer de suas contradições, o que ocorre até hoje com os vivos, que dirá com os mortos de ontem e com os que desapareceram já há milênios.

                                     III

   Safo, vivente ainda numa Grécia da oralidade, onde a escrita não era ainda uma prática consolidada na produção artística, possui, no entanto, um corpus extenso: São cerca de 200 fragmentos, um dos quais uma canção completa, o “Hino a Afrodite”. Mas, Safo, embora não seja a única poetisa grega antiga, é a única do período arcaico. Safo pode muito bem ser considerada, então, como a primeira poetisa grega. Pois a questão de se os fragmentos de todos os poetas antigos que sobreviveram, revelam uma proeminência ou não necessariamente dos mesmos, em relação aos seus contemporâneos, não contradiz, contudo, o epíteto dado à Safo da poetisa que abriu caminho, numa poesia madura, para outras poetisas percorrerem, uma vez que da tradição Safo tirou, com sua poesia, ainda na sua época, uma grande reputação. Da poesia antiga, não temos nenhuma outra além de Safo com o tamanho dela, ninguém a superou, dentre as poetas mulheres, em sua época e também na Grécia clássica.
   Um fato curioso é que as poetisas que surgiram na era arcaica e clássica da Grécia eram das regiões de Lesbos, da Beócia e do Peloponeso, mas não da Ática, o que revela que nas outras três regiões temos uma posição diferente e mais livre da mulher do que na Ática. Na Ática ainda tínhamos, como em Atenas, o confinamento das mulheres ao oîkos (casa), espaço feminino por excelência na Grécia, enquanto Safo, por sua vez, recebera educação esmerada e pertencia à aristocracia. Na Ática, por exemplo, só era permitido às mulheres, suas saídas do confinamento em casos de ritos religioso-cultuais, contudo, elas não podiam ser vistas e nem ouvidas, a única esfera de ação civil permitida às mulheres áticas era a religiosa, na qual eram bem atuantes.
   A condição de mulher poeta, para Safo, que tem em suas canções uma temática onde predomina o erótico e o amoroso, e que tem no universo feminino a sua força, donde se tem tentativas de retirar de tais canções ilações biográficas possíveis, e donde se tem o mito de Safo ser lésbica, culminam na questão da sexualidade feminina e de seu exercício a partir da figura de Safo, que pretendem explicar a poesia e a vida de Safo, mas que não têm nenhuma credibilidade histórica. Contudo, livres desta necessidade da historicidade, podemos nos remeter aos relatos que se formaram pelo século IV a .C. em diante. Neles, temos uma Safo com um marido, uma filha, muitos irmãos, numerosas amigas e companheiras, com as quais, segundo alguns relatos, manteve relações sexuais, além de um incrível salto suicida de um penhasco.
   O que se sabe é que, nos diferentes períodos históricos que se sucederam, tivemos várias imagens de Safo, desde a idealização do período romântico no século XIX, que é tão fantasiosa quanto os relatos antigos, e uma variada gama de imagens que não passam de idealizações de desejos, uma vez que a idealização nunca se refere a dados objetivos, fazendo de sua fantasia a imagem que lhe convir, um sonho evanescente que carece de conhecimento consistente sobre quem foi realmente Safo. O problema nevrálgico dos “maus” biógrafos, como tentei fazer entender antes. Mas, contudo, a imagem que temos, certa ou errada, é a da Safo lésbica, o que é uma imagem que já não pode ser mais apagada, o mito se entronizou e os parcos registros históricos se calaram, por falta de material legítimo.
   O grande problema, no entanto, quando temos uma força do mito da Safo lésbica mais forte do que os seus próprios fragmentos, é que podemos estar num caminho de erro irreversível, uma vez que nada prova em favor ou contra, partindo de tais fragmentos objetivamente, que haja como saber, indubitavelmente, qualquer coisa da biografia de Safo senão fantasias de antigos, românticos e modernos, nada mais que isso. A partir de Aristófanes (séculos V-IV a .C.) e da comédia clássica, passamos a ter referências das mulheres de Lesbos e o uso dos verbos lesbiázein e lesbízein, (“agir como uma mulher de Lesbos”), que conotavam luxúria e lascívia, além da prática da felação, que as lésbias teriam inventado, mas nisto não há nenhum respaldo histórico. (Lésbia ou moça de Lesbos tinham a típica conotação de fellatrix e não de lésbica no sentido moderno do termo). Nada tem de provado, mas, sabe-se, desde a Ilíada, da fama de mulheres belas e sensuais da ilha de Lesbos, o que pode ter dado motivos para tais fantasias do período clássico e depois na modernidade, lembrando que o termo lésbica é moderno, do final do século XIX, como resultado de uma polêmica acadêmica em torno da sexualidade de Safo. E esta, se Safo era lésbica ou não, se tornou, infelizmente, a grande questão sáfica, e não a sua poesia. Na verdade, o que temos de dados da questão sáfica, além de seus fragmentos, é um emaranhado de assunções que vêm desde comédias gregas, até romances italianos, culminando em pornografia francesa.
   Nos fragmentos de Safo, a linguagem em que se apresentam imagens de paixão erótica, é uma característica comum a vários poetas gregos, tais como Hesíodo (c.700 a .C.), Arquíloco (c. 680-640 a .C.), Íbico (c. 550 a .C.) e Eurípides (c. 482-406 a .C.). Tal movimento erótico se reveste sob uma prática genérica de composição oral que se consolida em percepções mantidas pela repetição que se fundam na tradição. Portanto, ao falar de éros numa linguagem tradicional, Safo reflete nada mais que as práticas poéticas de seu tempo e de seu lugar histórico, pois a linguagem e as imagens que Safo usa ao tematizar a paixão, são as mesmas que encontramos em Arquíloco, e em outros poetas, antes e depois dela.

                                IV

   Como dito anteriormente, a poesia de Safo se encaixa no chamado à época gênero mélico, que se liga à canção, que era nada mais que a performance ao som da lira, o termo lírica, tardio, é datado do período helenístico (c.323-31 a .C.) em diante. Mélica ou lírica designava o verso que era cantado para a música e a dança, com mélos sendo, na literatura grega arcaica, o poema lírico, e o poeta, o melopoiós, o “fazedor de canções”. Na performance a canção podia ser entoada em solo e com acompanhamento da lira, ou em coro, com a inclusão de outros instrumentos e da dança, tendo então um espetáculo.
   Na métrica, a composição da mélica dá-se em estrofes de pés mistos, mais breves e menos complexas na modalidade monódica do que na coral. Sendo que a canção monódica comportava uma variedade de temas, que iam da vida cotidiana da pólis a eventos de um passado recente,  tudo em relação direta com a voz poética; enquanto que no coral tinha-se subgêneros como a celebração, a narrativa mítica e o canto de autorreferência à performance em execução pelo coro. O que fica claro é que a poesia mélica ou lírica grega arcaica era sempre vinculada à voz, uma vez que era na canção e na música que tal poesia se realizava, havendo aí, fundamentalmente, a interação geral entre o poeta, sujeito da enunciação, e seus destinatários, provocando um efeito lírico e estético que nós, modernos, não podemos imaginar, uma vez que só o espólio escrito deste período é o que resta para as análises e interpretações modernas.
   Recompondo minimamente o cenário, haveria para a canção solo várias audiências e ocasiões de performance possíveis, destacando-se o simpósio, central também para gêneros como a elegia e o jambo. O simpósio foi, por sua vez, no mundo grego, até o século V a .C., em que não estava previsto “um público de leitores”, o lugar de conservação e evolução da cultura “literária” relativa a temas alternativos ao ecumênico do epos e à ambientação pública do canto religioso oficial e da lírica agonística (temas que eram muito trabalhados na elegia, no jambo e na mélica monódica). O simpósio tinha como característica a expressão do modo de vida aristocrático dos homens na pólis, regido por um código rígido de honra, onde o beber era privilegiado e ritualizado, e onde em meio a essa fase, tinha lugar a performance, sendo então o simpósio, fundamental na difusão e preservação da poesia mélica ou lírica.
   Relaxados, bebendo vinho, os gregos ouviam e cantavam e/ou recitavam elegias, trechos de poemas homéricos, além da mélica, numa competição de habilidades entre aristocratas, tornando-se o simpósio uma ocasião adequada ao caráter informal e privado da mélica monódica. E tal simpósio de mélica monódica se dividia em dois estilos: erótico, dirigido aos membros do simpósio; e o de invectiva, dirigido aos que estão fora do simpósio. O simpósio, então, era voltado ao mundo privado, menos formal e oficial que o festival próprio à performance da canção coral.
   Em Safo, vendo seus fragmentos, encontramos em sua maioria a mélica monódica, contando também com um fragmento de lírica narrativa de caráter épico, além de pequenos fragmentos de mélica coral de tradição popular (os epitalâmios ou canções de casamento). A canção coral tinha a característica de ser uma performance em festival cívico-religioso, patrocinado pelos governos e aristocratas das cidades gregas, onde se tinha lugar o agón (competição) poético para cada gênero, com o poeta como compositor das palavras e da música, em que o humano e o divino eram celebrados e cantados, podendo, em outras ocasiões mais particulares, o coro conduzir grandes funerais ou grandes bodas, tendo em comum todos estes três tipos de coro o caráter solene e religioso, numa linguagem elevada, com forte traço mítico, no canto autorreferente do coro, e nas máximas éticas e morais que reafirmam os valores da comunidade.
   As composições de Safo, por sua vez, são fundamentalmente canções, fragmentos que demonstram que a melodia antiga era serva das palavras, numa obediência à pronúncia quantitativa da fala, sendo a poesia grega, então, não orientada por uma escansão dos versos por acento, mas por duração breve ou longa de pronúncia da sílaba, o que confere uma sonoridade bem ritmada.
   E, quando pensamos na mélica grega, voltamos às suas origens pré-literárias, como os cantos de culto aos deuses, de lamento ou de celebração de vida e morte, cantos que acompanhavam os trabalhos, como na colheita de uva. Portanto, a mélica tem profundas raízes populares, refletindo toda uma tradição.
   Quanto ao “Eu poético”, trata-se de lembrar que, ao contrário da poesia moderna, em que pode haver ou não relação da primeira pessoa do verso e um eu do poeta empírico que insere algo de sua biografia nos seus poemas, não podemos elucidar com precisão esta questão no que se refere à poesia grega antiga, pois neste caso temos o caráter de performance de tais poemas, e que uma vez direcionados a uma audiência, e na entoação da voz com métrica, pode ser que haja uma grande despersonalização do poeta antigo que está mais vinculado às tradições e sua mnemônica do que a um eu biografado em tais poemas, sem falar nas exigências do canto, do metro e do diálogo, que foram enumerados anteriormente.

    HINO A AFRODITE

   O “Hino a Afrodite” é não só a mais famosa canção de Safo, mas a única integralmente preservada no tratado Sobre o arranjo das palavras, de Dionísio de Halicarnasso (retórico, século I a .C.) , além de ser a primeira canção do livro I de Safo, compilado na célebre Biblioteca de Alexandria, provavelmente na virada dos séculos III-II a .C. . Segue o poema traduzido:

                        De flóreo manto furta-cor, ó imortal Afrodite,
                        filha de Zeus, tecelã de ardis, suplico-te:
                        não me domes com angústias e náuseas,
                        veneranda, o coração,

                        mas para cá vem, se já outrora –
                        a minha voz ouvindo de longe – me
                        atendeste, e de teu pai deixando a casa
                        áurea a carruagem

                        atrelando vieste. E belos te conduziram
                        velozes pardais em torno da terra negra –
                        rápidas asas turbilhonando, céu abaixo e
                         pelo meio do éter.

                         De pronto chegaram. E tu, ó venturosa,
                         sorrindo em tua imortal face,
                         indagaste por que de novo sofro e por que
                         de novo te invoco,

                         e o que mais quero que me aconteça em meu
                         desvairado coração. “Quem de novo devo
                                                                                          [persuadir
                          (?) ao teu amor? Quem, ó
                          Safo, te maltrata?

                           Pois se ela foge, logo perseguirá;
                           e se presentes não aceita, em troca os dará;
                           e se não ama, logo amará,
                           mesmo que não queira.”

                           Vem até mim também agora, e liberta-me dos
                           duros pesares, e tudo o que cumprir meu
                           coração deseja, cumpre; e tu mesma,
                           sê minha aliada de lutas.

Bibliografia:

Safo de Lesbos, Hino a Afrodite e Outros Poemas, Editora Hedra.
(texto baseado na Introdução de Giuliana Ragusa)

30/05/2012 Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
     




       

sexta-feira, 11 de maio de 2012

SOBRE O PRIMEIRO APOCALIPSE


I – A GÊNESE

   No começo Kaos reinava, o terrível sopro não tinha ainda soprado, a máquina de tudo era ainda incipiente, e aí então o mestre se autogerou, num campo sem chão em que a História ainda não era, e nem eram os seres, o mestre se autodenominou Zion, cresceu nele tumores de vida, ele ficou grávido do Ser, ainda não era a existência, Zion ainda estava acordando, tinha uma tarefa árdua pela frente, criar de Kaos o mundo enfim.
   Demorou até o despertar completo de Zion, ele fumou uma erva que nasceu de seu pé esquerdo e com seu pé direito retirou da seiva de seu dedão a flor de Lótus alucinogênica que lhe permitiu ter visões místicas. Zion estava pronto, seu pensamento acabara de nascer, ele se descobriu imortal, mas não teria como conceder tal imortalidade para os seres que cresciam em sua barriga, Zion resolveu estudar e planejar tudo, ele não sabia como ele mesmo havia surgido, mas logo entrou em conflito com Kaos.
   Kaos não era um Deus, Kaos era o não estar em nada, Kaos era o antes de todos os ontens, não havia tempo em Kaos, mas do pensamento que nascia e despertava em Zion, ele tomava seu pensamento como o nascimento do tempo, de seu pensar ele já sabia como seria o Ser, a matéria existencial se plasmava, Zion estava em conflito com Kaos, Zion teria que derrotar Kaos para de seu ser autogerado, ato puro, nascesse vida, e vida em abundância.    
   Zion ficava enorme, logo se tornou um gigante, cresceu na enormidade infinita que era ele mesmo, já não cabia no nem não-ser de Kaos, ele estava embebido no paradoxo, piores do que os paradoxos de Zenão de Eleia, ou das aporias perturbadoras da lógica imperfeita. Mas, Zion era perfeito, e não poderia ficar no estado mutável de paradoxos, a primeira conflagração começa, Zion se torna a própria transcendência, era o Prana, era o Karma e era o Nirvana.
   Zion se tornara o tudo no todo, e o todo ainda não era Ser, para sair de Kaos definitivamente, ele teria que regurgitar os seres que cresciam em sua barriga, parecia que era o momento, Zion já estava autoconsciente e iluminado, Zion resolveu regurgitar os seres de sua barriga, e nasceu Tempo e Abismo, nestes dois seres Zion inoculou Prana e Karma, mas deixou Nirvana só para os seres puros. Tempo recebeu Karma, e Prana recebeu Abismo, lembrando que Karma não era um ser, mas era a condição de Tempo, este sim que era ser. Prana também não tinha ser em si mesmo, ele era condição de ser para Abismo, foi então que Tempo se fundou como Karma e Abismo como Prana, e o sentido de Abismo não era a queda dos anjos, mas era tanto a morte existencial como a morte física.
   Tempo era o condutor de Abismo, Tempo era o mestre de Abismo, e Zion era a luz de Tempo e a sombra de Abismo que se equilibravam num Pólemos que virava Harmos, então de Tempo e Abismo temos Pólemos e Harmos, seres secundários na senda de Zion, pois Zion vive essencialmente de Tempo e Abismo, e neles dois fundou a estrutura da existência e finalmente derrotou Kaos. Kaos virou Limbo, e a partir de então, Zion reina.
   Mas, Zion sabia que a obra não estava completa, seus estudos e meditações lhe fizeram entender que Tempo e Abismo não eram totalmente concretos, eles eram seres incompletos, e como Zion era perfeito, ato puro, em sua barriga ainda tinham mais seres, ele sabia, e então regurgitou Terra e Oceano, destes dois criou Matéria.
   Terra e Oceano se fundiram e viraram os continentes antigos Lemúria e Atlântida, e em volta de Lemúria e Atlântida havia Mar, do profundo do Mar, Zion criou os primeiros seres vivos, daí eles começaram a evolução e o povoamento de Mar, Lemúria e Atlântida. Os primeiros seres vivos da Terra logo se tornaram resquícios de consciência, quando Tempo foi autorizado por Zion, ele fez nascer os primeiros seres inteligentes, que foram, na primeira ronda das eras cíclicas, os lemurianos e os atlantes, e foram criados, ao mesmo tempo, Sexo e Amor, que foram então inoculados nos lemurianos e atlantes, mas com Amor nasceu Ódio, e houve então uma guerra entre os lemurianos e os atlantes, de Sexo haviam nascido cinco gêneros, três foram extintos nesta guerra e restaram dois, Homem e Mulher.

II – A HISTÓRIA DE LEMÚRIA E ATLÂNTIDA

   Da primeira guerra entre Lemúria e Atlântida restaram os dois gêneros, o que não impediu experiências genéticas em Atlântida que geraram aberrações, dentre elas alguns hermafroditas, tais criaturas foram escravizadas pelos atlantes, enquanto os homens mais vigorosos de Atlântida se preparavam para uma nova guerra e a invasão de Lemúria para a extinção dos lemurianos. Começou então a ser criada pelos sacerdotes atlantes, uma nova mitologia para reinar sobre o povo, ficou no pórtico dos Sete Sábios a inscrição do deus criador Temor.
   O grão sacerdote foi eleito pelo oráculo de Temor, reinaria a partir de então em Atlântida o sábio Salesius, grande filósofo, cientista e engenheiro de guerra, poeta e excelente musicista, que fora criado por Alefim, antigo sacerdote do início da civilização atlante e que morrera depois de um surto de peste bubônica nos arrabaldes da capital de Atlântida, a cidade de Sírius, maior metrópole do mundo naquela época e repositório de toda a sabedoria e ciência de Atlântida. Lemúria, em comparação a Atlântida, tinha a capital Mussarda, que tinha castelos e o oráculo de Panassés, onde reinava o grande sábio Fronestes, que era grão sacerdote e governante de Lemúria, além de representante da mitologia lemuriana, e guardião da sabedoria e ciências lemurianas.
   Não havia muito intercâmbio cultural entre os dois continentes antigos, a língua dos atlantes era o kanoiwa, e a dos lemurianos o lemoniwa, o tronco comum das duas línguas era o bratalí, mas com o tempo e as guerras periódicas entre lemurianos e atlantes, o bratalí foi desaparecendo, sendo falado apenas pelos sacerdotes mais graduados de ambos os continentes. A origem da sabedoria atlante ficava em papiros na língua ancestral bratalí, mas só era permitido a leitura de tais papiros para os iniciados no sacerdócio Puitalaía, a ciência oculta dos atlantes, que era a sabedoria dos sacerdotes de Atlântida. Tais papiros ficavam guardados no oráculo de Temor, e quem permitia o acesso a tais papiros aos iniciados era o grão sacerdote Salesius.
   Em Lemúria, não era muito diferente, mas os papiros do oráculo de Panassés era em língua específica dos sacerdotes, um derivado da língua ancestral bratalí, o bratatiwa, que era um código secreto entre os iniciados lemurianos na ciência oculta criada pelo mitológico primeiro sábio da civilzação lemuriana, Agathe, filho do deus Termátilas, o deus que governava os destinos de Lemúria naquela época. Logo depois, a mitologia lemuriana fora reformada, e o culto de Termátilas ficou meio esquecido, nascendo entre o populacho, cantos de fertilidade do deus Dasmin, que, para o sacerdócio lemuriano, não passavam de crendices populares, mas que ganhou grande vulto em Lemúria.
   O canto de Dasmin, em Lemúria, virou grito de guerra contra os atlantes, pois os guerreiros lemurianos queriam se vingar dos atlantes pela derrota de Lemúria na última guerra, mas era impossível, pois a engenharia de guerra atlante era muito avançada, enquanto os lemurianos eram mais filósofos que homens práticos. E os cantos de Dasmin, segundo os sacerdotes lemurianos, estavam degradando os costumes dos lemurianos, parecia que a decadência cultural dos lemurianos era interminável, enquanto que a ciência atlante avançava rapidamente e o objetivo dos atlantes era, na próxima guerra, destruir Lemúria e tomar Mussarda, além de ter acesso aos papiros da filosofia do oráculo de Panassés, que era uma filosofia mais vigorosa que a ciência oculta de Atlântida, além de Atlântida querer desvelar o código secreto bratatiwa.
   Os lemurianos já não respeitavam mais o código moral público dos sacerdotes e queriam o fim do governo de Fronestes, acusado de destruir os templos e os ídolos Dasmin. O povo lemuriano logo inicia uma revolução e toma vários templos dos sacerdotes lemurianos e destrói os altares dedicados à Termátilas, e acusam a ciência oculta de Agathe, de privilegiar os sacerdotes, que viviam em opulência, enquanto que o povo vivia à míngua. Então, o líder das tribos lemurianas, Cevílias, consegue invadir com uma milícia de guerreiros o templo mor de Termátilas, o oráculo de Panassés, e os guerreiros revolucionários queimam tudo, inclusive os papiros bratatiwa, e depois vão ao castelo de Fronestes e degolam o mesmo, declarando então Cevílias, rei de Lemúria, e o culto de Dasmin como a religião oficial do continente.
   Logo, os lemurianos convencem o novo rei Cevílias a treinar um exército para lutar contra a máquina de guerra dos atlantes, a nova guerra entre os dois continentes era iminente, Dasmin era o novo guia dos lemurianos contra o deus atlante Temor. Mal sabiam os lemurianos, por sua vez, que o treinamento do exército atlante, já era um grande preparo de Atlântida para tomar Mussarda, embora o oráculo de Panassés, muito cobiçado pelos sacerdotes atlantes, já estava completamente destruído, e que a cultura lemuriana, agora, se resumia a um culto popular degradante do deus Dasmin, e que grande parte dos sacerdotes que falavam o bratatiwa, já tinham sido assassinados pelos revolucionários de Cevílias.

III - A GUERRA ENTRE OS LEMURIANOS E OS ATLANTES E O PRIMEIRO APOCALIPSE

   Antes da última guerra entre Lemúria e Atlântida eclodir, aquela que levaria à destruição das duas civilizações, e ao fim da primeira ronda, uma vidente muito conhecida de Atlântida, Safira, profetizou a vitória de Atlântida contra Lemúria, mas que haveria uma herança que destruiria por completo toda a população de Atlântida. O rei Salesius ouviu com atenção ao enigma do oráculo de Temor que, segundo a vidente, era a voz do espírito de Temor, que dizia o seguinte: “As caravanas avançarão até onde o horizonte alcança, o reinado será próspero, mas um outro Deus, muito mais poderoso, que ninguém conhece, nem mesmo a mais profunda sabedoria, dará dos céus de onde mora, a sua vingança.” Salesius não entendeu nada, e também não aceitou a interpretação da vidente Safira que, embora respeitada por todos em Atlântida, desta vez acabou irritando Salesius em demasia, que, num acesso de ira, mandou Safira à fogueira numa pira, foi uma ação temerária de Salesius, pois Safira era a única vidente que incorporava o espírito do deus Temor, mas Salesius não deu ouvidos ao oráculo e queimou Safira, e logo depois fechou o oráculo de Temor, dizendo que a partir de então Temor estava morto, e que ele era o próprio deus de Atlântida.
   O treinamento do exército revolucionário de Lemúria avançava, se sofisticava, mas Salesius não se preocupava, pois sabia que o oráculo de Temor lhe garantira a vitória, embora a palavra vingança lhe tenha provocado demais, e, em sua vaidade, ele se declarou o maior de todos, maior que a tradição atlante, maior que Temor, e muitos dos sacerdotes atlantes, que eram devotos de Temor, conspiravam contra Salesius, planejavam um atentado à vida de Salesius ao fim da guerra contra Lemúria. Salesius começava a ficar fora de si e mandou logo o exército atlante se organizar, pois, em uma semana, eles invadiriam Mussarda e matariam o rei Fronestes (não havia ainda chegado a notícia da revolução de Cevílias em Lemúria, para os atlantes).
   Por sua vez, Cevílias mandou o exército lemuriano construir fortificações para proteger Mussarda, e que, quando chegasse o exército atlante, eles tomariam conta de todas as coordenadas da região, desde o vale do Siso, até as montanhas de Henan, última fronteira conhecida do continente lemuriano, donde se tinha a vista do continente de Atlântida, pois ali era o estreito que separava os dois continentes, o estreito de Mubauram, onde se tinha Mar no meio, e que, nos verões, secava, possibilitando a passagem à pé de um continente ao outro, embora aquela região, despovoada, e que só recebia gente em períodos de guerra, fosse um lugar estratégico. Pois então, Cevílias já enviara uma tropa até lá para ficar de sentinela até a chegada dos atlantes.
   Passou a semana, e então Salesius deu a ordem: o exército atlante invadiria a Lemúria pelo estreito de Mubauram, e avançaria em terra firme desviando das montanhas de Henan e do vale do Siso, pois Salesius sabia que nestes dois lugares os atlantes eram vulneráveis, restando então, o avanço atlante margeando o continente lemuriano pela enseada de Hocham até Mussarda, que ficava no fim desta enseada. Enquanto isso, uma das tropas lemurianas aguardava os atlantes para a primeira batalha no estreito de Mubauram.
   O exército atlante chega ao estreito de Mubauram, guerreiros lemurianos, em tocaia, atacam os atlantes que, devido ao treinamento rigoroso, revidam com espadas e formações triangulares que os lemurianos desconheciam, só havia uma tropa lemuriana no estreito, o resto do exército lemuriano estava nas fortificações nos arrabaldes de Mussarda, pois Lemúria não tinha outra alternativa, teriam que se defender até o fim, e o resultado no estreito de Mubauram não poderia ter sido outro, o exército atlante, muito mais numeroso e poderoso, massacrou a tropa lemuriana que ali se encontrava, avançando, então, agora com o caminho livre, em direção à Mussarda, pela enseada de Hocham. Cevílias já prevera a derrota, e logo premuniu as fortificações de que os atlantes provavelmente venceriam no estreito, a tropa só ficara ali como um primeiro gesto desesperado de Cevílias.
   Depois de uma caminhada duríssima de 35 dias pela enseada de Hocham, o exército atlante chega aos arrabaldes de Mussarda, e logo o exército inteiro de Lemúria sai das fortificações e luta contra os atlantes. Mas, mais uma vez os atlantes levam a melhor, suas formações triangulares e suas armas mais sofisticadas massacram todo o exército lemuriano, depois de 7 dias de guerra sangrenta. Os atlantes invadem então Mussarda, e vão atrás de Fronestes, mas encontram Cevílias no lugar dele. Embora confusos, eles matam Cevílias e capturam grande parte do povo lemuriano (os que não foram assassinados pelo exército atlante) e os levam como escravos para Atlântida. Só que, infortunadamente, não encontram o oráculo de Panassés, só ídolos de ouro de um tal deus da fertilidade Dasmin que, por óbvio, o exército atlante ignorou e os derreteu para levar o ouro até Atlântida. Antes disso, destróem o que restara de Mussarda, que vira uma cidade fantasma, só de ruínas. E o continente de Lemúria vira um deserto.
   O exército atlante retorna à Atlântida depois de 52 dias de caminhada, metade dos lemurianos capturados para serem escravos em Atlântida acabaram sendo sacrificados no caminho pelo exército atlante por falta de comida, só havia provisão para um número restrito de pessoas, e próximo à Atlântida, houve um morticínio, pois senão haveria uma outra guerra, dessa vez por alimentos. Enfim, o exército atlante chega a Salesius, e dá a notícia da vitória e do extermínio do povo lemuriano. Salesius pergunta logo dos papiros de Panassés, mas o general Furgo, líder do exército atlante, comunica o que havia ocorrido antes da chegada deles em Lemúria, e então, Salesius fica irado, e manda matar Furgo e mais três tenentes, pois não se conformava em não desvendar o código bratatiwa. Mas, os abusos de Salesius estavam passando dos limites, parte do exército atlante, embora fiel ao rei, acaba por se revoltar com suas ações desmesuradas e não aceitam a morte de seu general Furgo. Logo, os sacerdotes conspiradores, que queriam se vingar do fim do culto à Temor, imposto discricionariamente por Salesius, cooptam esta parte do exército insatisfeita, que era mais que a metade do contingente de todo o exército atlante, e planejam a morte de Salesius. Fica evidente, também, que Salesius já não estava de posse de seu juízo desde que baniu Temor da tradição atlante.
   Salesius é raptado por dois soldados na madrugada, e entregue ao líder da conspiração, o sacerdote Timério, que interroga Salesius e diz para ele reestabelecer o culto de Temor. Com a negativa de Salesius, Timério ordena um dos soldados a degolar Salesius, arrancar a sua cabeça, e expô-la na praça central de Sírius como símbolo do retorno do culto de Temor em Atlântida, e a vingança da morte da vidente Safira, que era considerada santa entre o povo e os sacerdotes atlantes.
   Mas, não era esta a vingança profetizada pelo oráculo de Temor, a morte de Salesius era só um falso sinal de que tudo retornara ao normal e de que a justiça estava feita. Pois Timério ordena um novo código moral público criado por ele mesmo em um papiro escrito em 32 dias e que vira regra geral do convívio e dos costumes atlantes, o que desagrada grande parte do povo atlante, e acaba que um dos populares mata Timério, depois de 3 meses de vigor do novo código, e o povo atlante se volta contra os sacerdotes que são dizimados, e então, Atlântida cai na anarquia e na decadência moral e cultural, com inúmeros ídolos de madeira e de bronze, até que uma guerra sangrenta pelo poder entre várias tribos atlantes, matam mais da metade do povo atlante, que, por fim, é dizimado por um terremoto e por um tsunami que abalam violentamente os continentes de Atlântida e Lemúria, acabando com estas civilizações ancestrais.
   Os poucos que sobreviveram, foram para uma ilha desconhecida até então, que hoje sabemos ser a ilha de Creta no sul do Mar Egeu, que criou a nossa civilização conhecida depois de migrações para o rio Tigre e Eufrates, e para o Egito. Acabou assim, a história trágica das civilizações lemuriana e atlante, este foi o primeiro apocalipse, e nada restou de material desta loucura toda, senão os registros de Timeu e Crítias de Platão. Zion provocara com seu sopro o fim desta História que virou lenda e que povoa o imaginário antigo e contemporâneo, passaram-se 12.000 anos desde então, e o mistério continua. Zion cria o novo mundo logo após este cataclismo, e o Mar violento levou e elevou este mistério. Submersa, a lenda ou História continua, e Zion sempre reina, desde o fim de Kaos e desde o começo das eras. E Tempo se encarrega de tudo explicar, e Abismo de tudo esconder.

11/05/2012 Contos Psicodélicos
(Gustavo Bastos)    
 
   
     
 



   
   



   

domingo, 6 de maio de 2012

OS POETAS DO ABSURDO


Ventos suaves na melíflua
canção.
A paisagem sonha com não sei
o quê, mas sei que é bom.
A bondade não é uma ação
ridícula,
pois ridículo somos todos
quando ignoramos
o sofrimento de uma alma,
não abriremos caminhos
aos canibais devoradores
das nossas vidas,
seremos poetas,
poetas da vida,
poetas sem ter nada,
poetas sem medo,
pois da poesia se descobre
que a existência
é um assim estar
em boa miséria,
a miséria do amor
que nos torna
poetas,
poetas sem lei,
a lei é só um esforço
contra o absurdo,
mas absurda é a vida,
e absurdos são
os poetas.

05/05/2012 A Lírica do Caos
(Gustavo Bastos)

SERIAL KILLER


Vem, desejo mortal de matar tudo,
vem déspota assassino
julgar a minha carne,
fazer estrume do meu lazer,
lançar aos urubus na febre
todos os meus sonhos,
correr indefinidamente
por todos os cantos do mundo,
cantar a sangria de meu cadáver
como a entranha do precipício
em que teu tribunal queimará
como se queimam as almas do hospício,
mata-me! mata-me! vai, engodo,
peste bubônica, bílis negra
da amargura ao som do féretro
das rosas em sua morte de urros,
noite intempestiva como temporal
das têmporas no sol que afunda,
vai! não me mate sem dor,
me mate de uma vez em seu rancor,
faça de tua inveja brutal
o meu mais vil sonho de glória,
a melancolia te pegará
depois de teu infortúnio,
e eu não terei pena
porque não tenho pena
de ninguém,
meu poema é o alvo e a redenção,
sou estrela infinda que vigia
o tempo todo o meu coração inteiro,
eu tenho a tua cabeça como prêmio,
sou anjo torto transfigurado,
sou homem morto que não morreu,
degustarei teu pâncreas,
beberei teu fígado,
triturarei o teu estômago,
e arrancarei o teu esôfago,
vou atacar os teus pulmões,
queimar os teus rins,
derreter os teus testículos,
fritar o teu cérebro,
derrotar o teu coração,
ridicularizar a tua língua,
e ler nos teus olhos
antes de queimá-los
sem pudor e sem piedade,
vou juntar a tua carcaça
numa noite de febre
e revirar a tua tumba
quando bater o sacrilégio
da meia-noite.

05/05/2012 A Lírica do Caos
(Gustavo Bastos)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

QUADRANTE SOLAR


O sol do poema se veste
como leão na esfera veraz
de minha cantiga agreste
na terra da paixão que jaz

O sonho trevoso refulge
em tons vicejantes de poder
nas luas sentidas de condoer
varando a noite no meu lume

Das abóbadas sonhadoras de vigor
um sentimento pátrio de rima
verga o tronco do poema devedor
de meus sóis que vão em dor vendida

No passo ao címbalo de meus átrios
corroem céus submersos de mar
num verbo corrente do verso amar
sem chão e sem solilóquios vários

Em vã solidão não há céu em clarão
senão o limbo das almas derrotadas
por não saberem se voltarão
sem riquezas na lida das mansardas

Como lírio de selva na miragem
saberá de seus pendões a morte
que um dia foi o norte que não volte
de um tempo ímpio que não mais fazem

Pelo sino que toca à hora funda
se volta ao campo em dor e pranto
não mais rima que vai à barafunda
roer os ossos ociosos que canto

Ver de verde firmamento a escuridão
no silêncio da noite tal sentimento
com vigor terrível do mar que arrebento
no sal do poema que revelarão

Não serei torpe figura de tropa
ao ver de través meu langor
em lindo vagar que nunca soçobra
pelo canto sem rumo e sofredor

No acalanto das feras em prístinas eras
quando louvarei meu vitral
senão desperto em sonho venal
do que fui e de poesias severas

O estro e astúcias aos borbotões
ascensionam almas no vinho bruto
ao sol deserto da carne que tu pões
não virá sem hora na dor do murro

O poeta sentirá na carta o poema
e seu verdor refletido nas parcas
como em costuras fiéis e armadas
do livro que terá o poente que lamenta

Eu verei sem rancor e sem vertigem
a cor da vida pelo céu azul
pois dada à suma que é virgem
um terror sem bruma do debrum

Deblaterando-me com dor de fel
visto minha cabeça de aurora
uma vez rimada na lua que demora
perder-me em açoite como um fiel

Ao horror do último fragor
eu olharei a sensação ferida
qual lampejo que ama o sonhador
pelo que vi qual luta ser a vida

E a vida nunca tão esbelta
quão bela é a espada
vai viver a senda da nau esparsa
de lustre brilhoso de poeta

Vai o sol aurora férrea
redivivo senhor de si
avivar o vinho da azaleia
parar o corpo que ri

Da comédia ao drama da arte
tem todo o sonho quão delírio
desvelar o mar que aqui miro
uma vez por todas sem matar-me

Das nuvens o cume do lugar
desdita do criador anuncia
o poema do tigre sem desandar
num cais da nave em sinestesia

E jurar sob o sol no lagar
um juramento de ritmo à lua
vento soprando que não se ruma
senão para o silente caminhar

E na noite qual felicidade
ver tudo sem nada que arde
a não ser da noite o vil sonho
que não sei  mais como lhe ponho

Pois da carne ao labor da alma
tudo é lama e chão que nunca acaba
é o caminho eterno do poeta
que tem e entende tudo que acerta

Das dores os sóis pungentes
dos prazeres vis corpos de gentes.

20/04/2012 A Lírica do Caos
(Gustavo Bastos)

DORES IMORTAIS


As pétalas choram o desterro
da anêmona como último suspiro
da estrela da manhã.
O cadáver da maçã
escutava a dança
em silêncio.

O disparate da turba desvairada
pela cidade oca deslumbrava
o poeta na janela do sol.
A escrita sumária desvelava
as pétalas do sonho náutico,
sob a sombra da vinha
uma queda da água benta
despencando como música
no suor das esferas.

Eu, morrendo, estupefato,
enternecia o meu coração
em estro faustoso.
Nuvem composta de vinco
e vigor pela estrada,
nunca dantes visto
o navegante
em sol e lua
no mar do delírio.

Evoé poeta! Quais nuvens
mais em seu súbito amor
de primavera com flores?
Quantas primaveras mais
em castelos de fúria?
Que viço no regalo
dos poemas?
Quantos versos em sonho
nas vidas em dissonâncias?
Outro pecado em sua
morte gloriosa?

Eu vi o céu sob a tempestade
como uma tonitruante
rima sem morte e sem sol.
Eu temi o vinho sobre mim
como um embriagado
em feroz desdita.

Do sonho sempiterno
quão veloz e eterno
morreria sem ver
o labirinto?
Olhei, de súbito, compor-se
na criatura dançante
dos ferrolhos
que me prendiam,
um manipanso
da magia
dos estertores
de minha loucura.

Contra o vento o abismo
no auspício da bruma
em campanha feérica.

No castiçal a cantiga
dos poetaços
na justaposição
de seus versinhos
de amor,
um enamorado se afogando
em sua paixonite
de dias maravilhados.

A cruz, desde o credo da fé,
assumiu-se em horror
perante a tribuna
vertigem
da sombra
de luz
desandada
no prisma
em poesia.

Vestes andrajosas
sepultavam
a ventania
da rima
no condoído
peito de meus
poemas,
e a luz rarefeita
inundava
o verso
de êxtase.

De soslaio o solstício
supria a minha fome
de sol e terror.
No balaio o equinócio
morria na minha fonte
de pó e fulgor.
O eclipse sorria
terrível
pelas luas mortas
de um negro sonho
de albor.

As lágrimas eram a potência
da alma depauperada
na chama da paixão
ritmada e decantada
pelo rouxinol
depois do veneno
da erva maldita.

Sempre ouvirei
da ausculta tenebrosa
o réquiem da filosofia
que cintila como pássaro
na saúde dos cavalos
em sonhos de pétalas
na saudade
que vinga o céu e a terra
de suas ilusões.

Não ouvirei mais as trevas
em lamúrias atrozes
que não silenciam
senão pelo grito
que escapa
na noite vã
da poesia
que nunca será
exposta ao sol do dia.

Verei o fantasma
na queda dos anjos
e o relógio cessará
quando o tempo da vida
refulgir no desespero
da dor,
e meu olor de refugo
sentirá a peste
em minha carne
despertada
em alma eterna
no lírio campestre
que a juventude
levou num amor remoto
de solidão
e navio.

Não mais meu lírio,
senão delírio
na assunção
do espírito imortal.

20/04/2012 A Lírica do Caos
(Gustavo Bastos)

quarta-feira, 18 de abril de 2012

POEMA-COBRA


a cobra
       enrola
             com o rabo
                           todo o veneno
                                      que inocula
                                como vento
                       seu bote
       no homem sem
  sorte
      como um coração
                que nunca vê fim
                              quando a cobra
                                           morde seu dedo
                               e o homem
                          morre
              do coração
        e o pulso
que pulsava
          agora é morte
                      morte matada
                                  de um veneno
                que entrou no sangue
         e a cabeça da cobra
                 mostra
                a língua
             bi       furcada
                como
               língua
            que    vê
             o duplo
         de si mesma.

18/04/2012 (00:50) A Lírica do Caos
(Gustavo Bastos)